Condenar Dirceu é a consumação de um
golpe
Em certo
momento da entrevista que concedeu nesta terça-feira à Fundação Perseu Abramo,
o ex-ministro José Dirceu diz que cometeu muitos erros, mas nenhum deles está
sendo julgado na Ação Penal 470. Dirceu provavelmente se refere a erros
políticos. Um deles talvez tenha sido confiar na mídia.
Por outro
lado, a “confiança” de Dirceu na mídia corporativa, também pode ser descontada
como integrante da grande concertação política desenhada por Lula e pelo
próprio Dirceu para ganhar eleições e dar sustentação ao governo. O que foi a
Carta aos Brasileiros senão uma concessão a Roberto Marinho?
Mas o erro
foi “confiar”, não o acordo em si, que foi uma ação política extremamente
astuta. Pouco antes de expulsar os últimos espanhóis da América Latina, Simon
Bolívar explicou a seus compatriotas que eles estavam prestes a ganhar
independência política, mas recairiam imediatamente numa outra dependência, de
ordem econômica, da Inglaterra. Mas que, no futuro, libertar-se-iam também
dessa.
Lula fez a
mesma coisa. Com sua vitória, muitas forças se libertaram; muitas outras,
porém, continuaram sob tutela dos mesmos grilhões. As forças derrotadas se
uniram e conspiraram à sombra. Após dois anos, a Globo conseguiu pagar sua
dívida, novamente com ajuda dos americanos, mais especificamente do escritório
de advocacia Debevoise & Plimpton, que primeiro acertou a fusão da
Globopar com Rupert Murdoch e
depois realizou a reestruturação financeira do grupo. Não foi a primeira vez
que a Globo é salva pelo Tio Sam. A Abril, também em crise no início do governo
Lula, receberia aporte de investidores norte-americanos e depois de um grupo
sul-africano que havia feito fortuna durante o apartheid.
Assim que
esses grupos se recuperaram financeiramente, eles atacaram. Quer dizer, antes
aguardaram, naturalmente, a melhor oportunidade, que veio com a entrevista de
Roberto Jefferson. A partir dali, tudo foi articulado nos gabinetes dos grandes
grupos de mídia.
Foi montado um golpe branco, político e
jurídico, que pode se consumar nesta quarta-feira, ou no dia seguinte, caso o
Supremo Tribunal Federal decida não aceitar os embargos infringentes.
A vítima
desse golpe não será Dirceu e outros réus, nem somente o PT, mas o regime
democrático como um todo, e o conjunto da sociedade.
Mas estou
seguro de que a democracia saberá organizar um contra-ataque à altura. Dirceu
poderá repetir o que disse Sócrates, depois que soube o resultado de sua
condenação pelos juízes de Atenas.
“Assim, eu me vejo condenado à morte por
vós; mas vós estão condenados pelo crime de improbidade e injustiça. (…)
Digo-vos, de fato, ó cidadãos que me condenastes, que logo depois da minha
morte vos virá uma vingança muito mais severa, por Zeus, do que aquela pela
qual me tendes sacrificado. Fizestes isso acreditando subtrair-vos ao
aborrecimento de dar conta da vossa vida, mas eu vos asseguro que tudo sairá ao
contrário. Em maior número serão vossos censores, que eu até agora contive, e
vós não reparastes. E tanto mais vos atacarão quanto mais jovens forem e disso
tereis maiores aborrecimentos”.
O STF e a
mídia se aproveitam de uma vantagem temporária. Em primeiro lugar, usaram a seu
favor a confusão milenar daquilo que a ciência política clássica, após Weber,
chama de “ética da convicção” e “ética da responsabilidade”. A primeira trata
dos princípios ideológicos e morais, ou seja, a convicção profunda que nos move
a fazer ou não fazer tal coisa. A segunda trata da responsabilidade política e
coletiva, sendo tão ou mais importante como a primeira: é quando um político
tem de tomar decisões que, embora sejam contrárias a seus princípios,
constituem uma ação necessária para o bem da coletividade.
Não se
trata de nenhuma justificativa da corrupção política, mas de uma tese estudada
há séculos pelos clássicos. Pode-se dizer inclusive que é a tese fundadora da
ciência política, sendo Maquiavel o primeiro autor a tratar francamente da relação
entre moral e poder.
Benedetto
Croce, um dos maiores teóricos italianos em filosofia moral e política anotou
pensamentos que certamente chocariam nossos udenistas de botequim. A citação é
de Nobbio, em Elogio da Serenidade (editora Unesp, pág.53):
“Outra manifestação da vulgar estupidez
das coisas da política é a petulante exigência que se faz de honestidade na
vida política”.
Para
Croce, a honestidade política não é aquela cantada pelos imbecis (o adjetivo é
dele), mas simplesmente a capacidade política, o talento, a virtude própria da
atividade, e que resulta em benefício para a comunidade.
O problema
do julgamento do mensalão é o mal causado à opinião pública. As sessões do STF
corresponderam a um show lamentável de deseducação política. As piores
atrocidades foram ditas. Todos os preconceitos vulgares de botequim vieram à
tôna, embora travestidos em linguagem pseudo-erudita e pomposa.
A maioria
das pessoas que acompanham longe agarram-se a convicção de que houve “roubo” e
pronto, os réus tem de ser presos, independente dos detalhes do processo. Essa
convicção nasce, por sua vez, da predisposição natural do cidadão a acreditar
sempre nas denúncias da mídia, mormente quando o alvo é um político.
O caso do
mensalão, porém, é ainda mais grotesco. Porque não houve nem roubo. A
“quadrilha” teria desviado dinheiro para subornar deputados a votarem alinhados
ao governo. Só que isso não aconteceu. O dinheiro não foi desviado do Banco do
Brasil. Aquele dinheiro da Visanet, que é privado e não público, foi corretamente
usado nas campanhas de marketing organizadas pela DNA.
O dinheiro
que irrigou o mensalão foram os empréstimos do PT e Valério junto aos bancos
Rural e BMG. Destinavam-se a pagar as pesadas dívidas de campanha dos
diretórios regionais do partido. E depois a pagar dívidas de partidos aliados e
subsidiar campanhas intrapartidárias. Enfim, ali estava a vida real da política
brasileira. Dívidas, campanha, mais dívidas. Uma realidade de todos os
partidos.
Não vejo
como algo “normal” que o PT tenha feito caixa 2 para eleger Lula em 2002. Não
acho “normal” que o PT, partido que cresceu prometendo ser diferente dos
demais, tenha agido igualzinho aos outros. Sim, acho justo que políticos
comecem a pagar por estes erros.
Uso o
pensamento de Menezes como exemplo porque respeito sua opinião e sua
inteligência, e entendo que é difícil fugir ao turbilhão violentíssimo dos
clichês políticos.
De fato, é
muito mais fácil comer uma salsicha do que assistir a seu processo de produção.
Mas o problema não é se estamos diante de algo “normal” ou não. O mensalão tem
início quando, após a vitória de Lula, Delúbio Soares é orientado, pelo próprio
Lula, a assumir todas as dívidas regionais do partido. Nenhum banco queria
emprestar, nem o Banco do Brasil. Por incrível que possa parecer, Marcos
Valério tinha muito mais crédito na praça do que o Partido dos Trabalhadores.
Não vou
comentar o clichê de que o PT agiu “igualzinho aos outros”. Isso me parece
leviano e injusto, com o PT e com outros partidos. Afinal, o PT ganhou as eleições, fez um
bom governo, inaugurando inúmeras instituições voltadas especificamente para
combater a corrupção: criou a Controladoria Geral da União, o portal da
transparência, e agora a Lei da Transparência. E recuperou a Polícia Federal. Não
acho que o PT agiu “igualzinho” aos outros.
Voltamos
aos dilemas éticos, e aí entende-se porque esse tema praticamente funda a
Ciência Política, e porque um pensador profundamente cristão, ético e
moralista, como Benedetto Croce, chama de imbecis àqueles que pensam de forma
superficial a relação entre moral e política.
Imagine
dois candidatos a prefeito de uma cidade. Um é honesto e pretende resolver um
trágico problema de saúde pública causado por uma indústria local, que está
literalmente envenenando os moradores da região. O outro candidato é marionete
da dita indústria e tem uma campanha rica, com doação da mesma indústria
criminosa. Imagina que o candidato honesto conclui que só poderá ganhar a
eleição se aceitar uma doação clandestina de um comerciante local. Pronto, ele
fez caixa 2. Mas ganhou a eleição, fechou a indústria e salvou vidas. Muitos
políticos que já fizeram caixa 2 devem ter histórias parecidas, verdadeiras ou
não.
Por isso
se fala tanto em reforma política e financiamento público de campanha. Porque a
falha ética fundamental do sistema não é exatamente o caixa 2, e sim a falta de
isonomia entre os candidatos: uns recebem milhões, legalmente, de empreiteiras
e bancos; outros não recebem nada. Quer dizer, esta é a segunda falha ética; a
primeira, a mais grave de todas, é a miséria e a injustiça social, que também
provoca desequilíbrio na democracia, visto que o pobre nunca terá a mesma
oportunidade para se informar, votar e ser votado, como um rico.
Quanto ao
julgamento do mensalão, todavia, não podemos nos enganar. Os ministros não
estão julgando o PT pelo crime de caixa 2. Esse é o problema central. A
acusação inventou uma ficção para impor penas estapafúrdias e prestar contas a
setores dispostos a se vingarem de sucessivas derrotas políticas, a começar
pela redemocratização. Os ministros votaram com a faca no pescoço, não
fizeram justiça. E a mídia, por sua vez, vendeu a tese de que o mensalão
significaria mudança nos hábitos políticos. Mas não se melhora a cultura
política de um país cometendo uma injustiça. Um Estado de Direito se faz com
leis, não com linchamento e vendetas midiáticas. Querem ver poderosos na
cadeia? Pressionem o Ministério Público a trabalhar com mais competência, a
parar de proteger criminosos para os quais existem provas abundantes.
Por fim,
esta semana os ministros pretendem outra inovação, que é negar o direito dos
réus aos embargos infringentes. Nessa questão, o que está em jogo é um
princípio de defesa. Interessante notar que só agora os colunistas de jornal
passaram a criticar direitos consagrados há séculos no país. Um réu culpado
pode abusar, sim, de ações protelatórias. Mas o sentido de um embargo
infringente, o princípio filosófico que lhe fez existir um dia, é proteger um
suposto inocente. Estamos invertendo tudo. Uma constituição humanista como a
nossa aceita que um réu culpado se beneficie da burocracia protecionista dos
procedimentos legais, se este for o preço para salvar eventualmente um
inocente. A filosofia penal moderna é ancorada na suposição da inocência e na
proteção do indivíduo contra todo e qualquer afã justiceiro do Estado.
Agora, no
afã de condenarem logo os réus furtando-lhes a última chance de revisão,
ministros do STF e colunistas de jornal farão com que inocentes paguem pelos
pecadores, extirpando um direito consolidado há séculos na suprema corte.
Se os ministros e os colunistas têm certeza da culpabilidade dos réus,
porque tem medo de uma revisão? Se estamos diante do “maior julgamento da
história” não é aconselhável que o debate seja aprofundado?
Tudo na
Ação Penal 470 é de exceção. E muitos esquerdistas entram nessa, alegando que o
PT deve sim pagar mais por ser o PT, por ter prometido “ser diferente dos
outros”. Isso não tem sentido. Não se pode transgredir a Constituição, que
declara expressamente, no Artigo 5, parágrafo XXXVII, que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”, para satisfazer sentimentos
de “acerto de contas”, à esquerda ou à direita. O STF tem de julgar conforme os
autos, sem fazer nenhuma exceção, sobretudo porque se trata da corte suprema e tudo que decidir tem caráter de súmula vinculante, ou
seja, vira quase uma lei.
Dirceu não
está sendo condenado por seus erros políticos, que sinceramente nem sei quais
são. Ele está sendo condenado para aplacar a fúria dos setores mais
reacionários do país, que manipularam habilmente a opinião pública para criar
uma atmosfera de linchamento. Merval Pereira chegou a ameaçar o Supremo com a
fúria da turba no 7 de setembro, como se os próprios ministros corressem o
risco de serem linchados se criassem obstáculos ao linchamento dos réus. O
Globo alardeou que a principal bandeira das manifestações seria a “prisão dos
mensaleiros”. Não houve nada disso.
Quando
Ancelmo Gois incensa Joaquim Barbosa em sua coluna, temos o pior tipo de
pressão, a mais insidiosa. É um recado a todos os ministros: “Vejam!
Barbosa é o modelo! Imitem-no e ficarão bem! Se não obedecerem, porém, não
garantiremos vossa proteção”.
Tanto a
imprensa como os ministros estão brincando com fogo. Essas condenações serão
levadas a tribunais internacionais, e depois serão analisadas implacavelmente
pela história. Exceções são exceções, valem por muito pouco tempo e somente
enquanto duram as circunstâncias que a geraram. A Ação Penal 470 pode ter sido
o canto do cisne da mídia corporativa, a sua última grande demonstração de
poder. Mas será também o seu derradeiro arbítrio, e um erro pelo qual pagará
caro.
Atenção: as palavras
em destaques e na cor vermelha são deste
BLOGUEIRO.
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